Monday, February 14, 2011

Ladeira 13

Ontem, ao subir a Ladeira 13, descobri que tinha medo do escuro. Não descobri. Na verdade sempre soubera disso, mas só nesta ocasião aceitei, mastiguei, engoli e digeri tal informação. De algum modo, os degraus irregulares daquele corredor fétido e úmido me deixavam incomodada. Vertigem, talvez. O pior de tudo era abrir caminho entre a vasta folhagem que se debruçava sobre a mureta que acompanhava a escadaria. Aquilo nunca havia sido podado. Esteja certo disso.

O modo como se enxerga o mundo é a imagem que temos de nós mesmos. Assim me sentia. Não sabia mais se o cheiro, umidade e a escuridão provinham da paisagem ou de minha boca; dos meus olhos, dos meus ouvidos, enfim; de todos os meus poros. Sabia também que estava sendo seguida. Não tinha coragem de olhar para trás. Nunca olhava. Percorria todo dia o mesmo caminho, e nunca tivera a audácia de olhar por sobre o ombro. Mas um resquício de sombra escapulia furtivo alguns degraus abaixo. Distância religiosamente respeitada!

Mas que respeito seria esse? Nunca fora habituada ao RES-PEI-TO! Nunca tivera a oportunidade de ver sua face. Talvez por ter caminhado de costas para tantas coisas durante toda a vida. Desejo agora - com toda a força de minhas vísceras - que este estranho me puxe pelo braço. É engraçado sentir vontade de ser interpelada por um estranho, ou mesmo estranha. O fato é que ultimamente não tenho tido tempo para maiores delongas ao me apresentar. Depois de tanta rotina, sinto-me atraída pelo fato de estar sendo uma possível vítima em potencial de um maníaco, ou mesmo um reles vendedor de inutilidades.

O que me diria ele? A qual mundo pertencerá? Qual a textura de sua pele, seus anseios, temores e amores? Por qual motivo pulsará seu músculo vital? Pode acontecer de o peso que carrega nas costas ser mais impiedoso do que aquele pelo qual venho sendo esmagada... Que venha! Que me mostre seu mundo e enriqueça o meu, seja como for, abstenha-se o bom senso. Enriqueça, ou que ao menos que seja de mínima utilidade. Um beijo quente basta. Um calafrio na base do pescoço. Um arranhão. E que suma depois como se nem existisse. Perfeito.

A ideia fez de minha cabeça sua residência. Parei. Minhas pernas estavam estancadas no chão, não podia mais andar ante ao novo. Toda a coragem que antes me faltara para viver eu agora não tinha para recusar a vida. Aqueles poucos segundos antes de o toque ser consumado duraram horas. Interminável momento. De uma angústia saborosa e sádica. Pensava de onde viria e como seria o contato. Se o calafrio subiria pela espinha. Ou pela barriga. Auspiciava por um arrepio de prazer. Ou de medo. Se fosse de medo, não deixaria de ser um delicioso ato de malícia de minha mente.

O som dos passos tornava-se mais decidido, tal qual minha frequência cardíaca e a contração muscular de meu baixo ventre. Já era ensurdecedor, àquela altura, o bater da madeira do calçado contra o cimento. O piso tão sujo e repleto de ervas daninha, porém, abafava a reverberação do caminhar. O matagal ao lado ajudava, um pouco, a evitar o eco. E se gritasse certamente ninguém ouviria. Assim como qualquer outro som que por ventura viesse a expelir, num ímpeto de sabe-se lá o quê, poderia ganhar terreno fora daquele ambiente lúbrico.

Um toque no ombro.

'Com licença.' E foi-se. Da mesma maneira como chegou.

Sunday, February 13, 2011

Eu, Cavalo

Aquele bordão batido, 'a vida é um jogo', surpreendeu meu subconsciente numa noite de sonhos agitados. Talvez pelo fato de ter sacrificado horas valiosas de descanso de coisa alguma para me digladiar contra o computador portátil no xadrez, foi no tabuleiro deste nobre esporte que me pautei para discorrer sobre o assunto.

Ideia simples: qual peça eu seria, caso tivesse o poder de realizar uma 'mutação', e partir para as casas brancas e pretas, sessenta e quatro ao todo, distribuídas em linhas horizontais e verticais? O objetivo, todos sabem, encurralar o rei inimigo e capturá-lo, o famoso xeque-mate.

Na linha de frente estão os peões. Na verdade, apesar de pouco valor, as oito peças que protegem os seus superiores são fundamentais, mesmo que sacrificados inadequadamente por várias razões. E no final eles fazem enorme falta. De fato, porém, não me encantaria atuar por ali, como um ser descartável. O peão é muito marginalizado.

Não vou seguir a ordem dos puristas e profissionais sobre a ordem de importância das peças, vou pela minha consciência. Temos os bispos, cuja denominação já me deixa contrariado. Eles correm na diagonal, são matreiros e oportunistas. Surgem do nada e, quando menos se espera, pronto! Você é surpreendido com suas infiltrações vis.

As torres exercem papel similar ao dos bispos, só que com seus eixos determinados pelas coordenadas verticais e horizontais. Trata-se de uma arma bastante ‘quadrada’, retranqueira e voraz. Considero-as eficientes, mas pouco criativas. Isso sem contar o fato de que uma torre de verdade só faz acontecer se cair na cabeça de alguém e, mesmo assim, ainda consertarão Pisa.

Como um bom jogo, o xadrez conta com um belo casal – sustentado pela mulher. O rei praticamente foge o tempo inteiro, com passos curtos e quase nenhum poder de decisão, é um covardão. Presa fácil para a rainha rival, esta dotada de enorme mobilidade. Perder a dama é derrota quase certa, portanto, diante de um adversário mais forte, um troca-troca sempre é bem-vindo.

Dentro deste universo, contamos com dois cavalos, de longe os personagens mais exóticos. Eles andam em 'L' e saltam sobre as demais peças sem pedir licença. Com este diferencial, os cavalos ludibriam como poucos e são irritantes quando querem, em jogadas ofensivas e defensivas. Uma tabelinha com a rainha, com alguma malícia, é xeque-mate garantido.

Ora, há melhor motivo para optar por eles?

Thursday, February 10, 2011

IMPULSO

I - Explicação

S. voltou a face para sua direita visando o pequeno feixe de luz que por ali escapava. Aguçada pela curiosidade, ela pensou se valeria a pena romper a ordem que lhe fora imposta mais cedo; ordem responsável por quase levá-la à loucura plena. S. sempre fora extremamente suscetível a desbravar e vivenciar situações diferenciadas. Portanto, o momento era de fato apetitoso, com leve requinte de crueldade, como chegou a pensar a própria S., ainda que bastante incapacitada por conta dos coquetéis medicamentosos.

Mal sabia, a pobre S., na origem desta história, que se tratava de uma armadilha ardilosa e cheia de poréns. É necessário, entretanto, organizar os fatos, obedecendo sistematicamente a ordem cronológica em que eles ocorreram. Para todos os efeitos, S. foi vítima de sua própria soberba, se assim podemos caracterizar a ânsia por sobrepujar limites pré-estabelecidos. Além de narrar os acontecimentos, corretamente ordenados, deixo evidente que, desde o início, busquei o mínimo de envolvimento neste caso, creio.

II - Rotina

Antes de ir para o trabalho, S. tomava um longo e demorado banho, motivo pelo qual precisava ter de acordar com o Sol ainda esboçando dar as boas caras no Horizonte. E, claro, perdia algum tempo para alimentar Fritz, o pequeno bichano de raça indefinida, e uma companhia inseparável, ao seu modo ranzinza de ser.

Para não se atrasar com frequência, S. evitava se alongar no consumo do desjejum. Ela basicamente devorava com languicidade uma maça e engolia uma xícara de café preto, sem açúcar, excelente remédio para a ressaca. Todo este preparativo representava o prazo exato disponível para alcançar o ponto de ônibus com relativa folga e ainda recuperar parte do fôlego. Não cultivava em demasia a vaidade, ou seja, sem desperdiço de fronte ao guarda-roupa.

Tudo pronto, S. partia para o emprego, onde já batia cartão havia seis anos. Semblante feliz, ela sequer se queixava de desempenhar o mesmo cargo, o de secretária executiva, há tanto. Com poucas perspectivas de subir na estafante vida corporativa, S. concentrava seus grandes momentos em fantasias que despejava no computador do escritório nos momentos ociosos. E também ao deixar o local, para se arriscar no burburinho noturno da Cidade.

III- Descartável

A gandaia nem sempre fazia as vezes de melhor amiga de S. , mas ajudava a amortizar o tédio e a falta de emoções daquela mulher, por assim dizer, em vias de se tornar mais uma balzaquiana inveterada. Esta vida à toa não a incomodava, tratava-se somente de uma breve fuga para aplacar seus desejos íntimos primitivos; fossem eles realizados com homens, ou mulheres, ou afins. Após inúmeras frustrações, o importante era saborear o prazer fugaz. Danos - permanentes ou não - faziam parte daquele jogo sórdido.

Obviamente, tal comportamento estava longe de ser condizente com os seus afazeres burocráticos e cotidianos, isso sem contar os adjetivos pouco lisonjeiros que ganhava com vida tão desregrada. Por ser independente, S. sofria o típico preconceito velado, talvez o da pior espécie, já que poucas chances de defesa concede às suas vítimas. E de tanto se expor, aquela voluptuosa mulher lacrava qualquer possibilidade de estabelecer uma relação afetiva longeva.

IV - PUNIÇÃO

Desta maneira, S. acabou tendo o que merecia, ao menos na visão daquele ogro travestido de homem. Ele a encontrou completamente embriagada, na saída de uma boate chinfrim, e cujo interior - de peculiar odor acre - abrigava perigos reais para uma criatura ingênua e de porte esquálido.

Vi quando S. saía abalroada pelo sujeito em direção ao beco fétido que compunha o cenário pavoroso daquele lugar. Postei-me atrás de uma caçamba de lixo, já aguardando pelo pior, e minha excitação era tamanha que precisei morder com força minha mão para não me entregar. Enquanto arrefecia minha sanha me deleitando com os gritos e gemidos abafados de S., o homem a possuía com fúria e uma intensidade brutal.

O animal terminou o serviço deixando-a nua e desacordada, repleta de ferimentos causados por uma garrafa quebrada. Ainda furtivamente, aguardei pelo resgate, a quem fiz questão de chamar, incólume atrás de meu esconderijo. E me certifiquei de que S. seria tratada adequadamente, plantando em sua bolsa um cartão de convênio médico antes de o socorro desembarcar na boca do lixo.


V - Epílogo

Claro, com tantas ressalvas, parece que me ponho no papel de carrasco e detrator de S., o que é um terrível mal-entendido. Só continuo me refugiando em palavras, como desculpas solenes, para não ter o mesmo fim de minha ex-amante. A inveja mata, reza o ditado. Prefiro ser uma testemunha acovardada, salva por detrás de uma carta, a ter extirpado o mínimo de dignidade que ainda desfilo por aí, no admirável mundo real.

Sim, oras, porque - no final das contas - sou contra qualquer tipo de hipocrisia e não compactuo com atos de selvageria. Sim, ela foi conduzida à minha clínica e diagnostica como uma borderline, ou seja, uma infeliz com uma grave complicação psiquiátrica, acometida por oscilações perturbadoras de humor.
E minha ordem havia sido clara. 'Jamais ambicione o meu feixe de luz.'

Wednesday, September 16, 2009

Capítulo 51

Gers entrou na Cidadela sob o olhar desconfiado de seus pares. Dentro da carroça, enlaçado por correntes e cadeados, Jacó Simão olhava ao redor, mas já estava muito alterado para esboçar alguma reação. Alguns jogaram frutas sobre ele, num ato hostil e pueril, para os habitantes daquele lugar, não passava de outra aberração com curto prazo de validade. Jacó, recém encarnado em um bicho estúpido, sentia-se feliz. Pegou o que pode e comeu, estava faminto. Os outros dois, plácidos, não davam a mínima, conheciam o roteiro. Eram dois sortudos, dependendo do ponto de vista, que não foram aproveitados na Arena por serem muito fracos para combate. E por isso, eram os lacaios domésticos e de caçada de Gers. Foram capturados em episódios diferentes, mas vinham de um mesmo lugar e caberá uma melhor explicação mais tarde. Enquanto rompiam pela Cidadela, Gers estufava o peito e cantarolava algo em sua língua de som estridente e pertubador, nitidamente tentando atrair o máximo da atenção do povo. Deu com o cajado no lombo do puxador de carroça e parou, numa espécie de praça, um centro, onde os mais diversos tipos berravam e vendiam de tudo. Ou trocavam. Havia um odor suspeito no ar e no céu os abutres se alinhavam, esperando o cair da noite, quando os restos eram desovados num aterro. Gers tomou o rumo de um palanque e pediu a vez. Anunciou a plenos pulmões que encontrara um verdadeiro assassino, um sanguinareo de primeira linha. E que dali a alguns dias, a data a ser marcada, o colocaria em combate. Depois disto, deu orientaçoes breves para os dois outros escravos e foi para sua choupana. Estava cansado após tantos dias fora de casa e ainda precisava, com urgência, batizar seu gladiador. E, acima de tudo, ao menos dar-lhe algum treinamento, para que não fosse trucidado logo de cara. Por mais que Jacó Simão tenha quase que literalmente caído do céu, não era algo a ser despediçado, mas sim um talento a ser lapidado. E se sentiu mportante após raciocinar como um importante homem de negócios que outrora fora.

Capítulo 50

Jacó Simão, com as feições de um pobre animal semi racional, babou uma gosta esverdeada antes de balbuciar suas últimas palavras de protesto antes de ser levado por Gers em sua carroça de quinquilharias. Eu não sou assim, não sou assim, preciso encontrar... Foi interrompido por Gers, que calou seu escravo. Após um silvo que ecoou por toda a mata, surgiram outros dois seres, não tão semelhantes quanto Gers, porém, bastante parecidos com este Jacó Simão. Os dois o recolheram e com ajuda de correntes o levaram para dentro de uma espécie de carroça com barras maciças de aço e que era puxada por uma espécie de pangaré sem rabo e de orelhas aparadas, certamente por lesões. Resignado, Jacó Simão deixou-se preder e, junto aos outros dois, subiu no transporte. Enfiou a cara feia por entre as grades, suspirou longamente e deu um urro de se fazer ouvir, quem sabe, até mesmo na longínqua Cidadela. De certo, o urro foi escutado em outro povoado, não tão longe dali. E os habitantes do povoado sabiam: estava para chegar carne nova no pedaço, mas de que tipo? O que o velho Gers teria recolhido na floresta desta vez? Há muito tempo, o carrasco, dono de um próspero negócio responsável por colocar os mais diversos seres frente a frente em combate até a morte não aparecia com alguém empolgante. Estava em baixa e corria o risco de perder seu espaço e - principalmente - a respeitabilidade. Gers, todavia, estava certo de que encontrara o animal certo para dar a volta por cima. Gers sorria - e com isso seu aspecto ganhava um semblante ainda mais detestável. Silvou outra vez e partiram.

Capítulo 49

Gers, com o tom calmo de voz grunhido, mandou Jacó Simão se calar. Ele havia invadido um lugar proibido a ele e todo o seu povo e, portanto, havia sido transformado em um habitante da civilação que ali habitava. Como estrangeiro, foi considerado priosioneiro, e ali, os priosioneiros serviam para diversas funções. O efeito da transmutação em Jacó Simão o transformou em um ser grandalhão e truculento, nem diferente do homem pacato que vivia na Cidadela e só perdera a compostura uma vez na vida, exatamente no assassinato de sua esposa Ludvigne. Era então algo em seu interior e como as transformações não eram contraladas, tomou forma de que viva em seu interior. Um indivíduo rancoroso e com ânsia de deixar tudo para trás, porém, ao mesmo tempo, muito frágil para radicalizar tão vorazmente seu estilo de vida. Deu-se que ele brutalmente matou a mulher, sem dó, quanto mais piedade. Jacó ouvia Gers e sentia-se de certo modo meio estúpido, não compreendia muito bem o que estava acontecendo. Gers, ciente de que seu novo escravo estava já em regressão intelectual, acelerou as últimas explicações. Jacó Simão, você é um brutamontes e sua vida agora depende de carregar fardos materiais. Somente os desta espécie. E você vai cumprir isto matando, decepando e dizimando quem eu quiser. Pois sou seu dono, amo e - o melhor de tudo - não paguei nada. Encontrei um moribundo no meio do nada e estou no lucro. Você, Jacó Simão, era um pobre coitado e o sofrimento só vai aumentar. Mas não tema, jovem lacaio, com suas faculdades mentais debilitadas, sua dor será interna, incapaz de externar-se em atos de fúrias, pois sua fúria será domada por mim. E por mim, Jacó Simão, você será domesticado. Como um porco selvagem.

Tuesday, September 15, 2009

Capítulo 48

Mesmo menor e mais esquelético, Gers convenceu Jacó Simão a se acalmar e precisou utilizar algum subterfúgio específico e secreto para tal, pois Jacó situava-se em situação de sentir o poderoso do momento. Gers o fez com a ajuda do cajado mais uma vez, acalmando o homem. Então pediu para ambos que se sentassem, pois muito havia ainda a ser conversado antes de prosseguirem a jornada. Calmo e muito pacato, o ser falava coisas sobre Jacó Simão ter invadido um local onde jamais poderia sonhar ter entrado e isso lhe custaria mais adiante. Ainda explicou o porquê de estar com aquela figura e a razão pela qual sentia ânsia por sangue e o desejo intríseco de destruir. Jacó Simão tentava, mas não conseguia dar muita atenção a Gers, queria experimentar suas novas habilidades. Esquecera completamente o motivo por qual estava ali e só pretendia sair correndo e aproveitar sua liberdade. Quando mencionou liberdade, foi interrompido de imediato por Gers, que já nao ostentava assim tanta paciência mais. Jacó, tal qual um jovem rebelde, pretendia de desvencilhar daquela embromação - após tantas coisas, pouco lhe importavam as razões e circunstâcias. Não era bem assim. E Gers tratou de deixar isso bem claro ao mais novo escravo de seu povo.

Capítulo 47

Jacó Simão olhou para Gers, que assim se apresentou, e analisou suas garras. Aí sim, passado o susto inicial, olhou para suas mãos, agora garras também. Passou os dedos pela pele - algo mais semelhante a couro - e sentia uma viscosidade interessante. Já não tinha nojo de si próprio e, mais do que isso, pareceu estar mais forte que nunca. Ele era mais alto não somente próximo de Gers, mas também se comparado à árvore na qual ficara amarrado nos últimos dias. Antes de fazer qualquer tipo de pergunta, andou, pisou firme sobre o chão lamacento e esboçou uma espécie de gargalhada, que saiu desafinada a ponto de afugentar pássaros e fazer com que os esquilos ali no papel de testemunhas saltassem de galho em galho para o mais longe possível. Sem perceber, Jacó Simão não murada apenas exteriormente, deixando o corpo frágil e inexpressivo para trás. Era agora um ser grotesco, medonho e bastante asqueroso. O mais importante, sentia muita força e um desejo incontrolável de arracancar a cabeça de todos os habilitantes da Cidadela com dentadas e encrustrar suas garras nas entranhas dos cadáveres, comendo, em seguida, cada órgão. Durante todo o tempo que parou para pensar nas novas possibilidades para sua vida como monstro, Gers permaneceu estático e de certa forma desinteressado, talvez não fosse novidade para ele assistir à tal reação. E, de fato, não era mesmo.

Capítulo 46

O ser grotesco começou a conversar com ele, perguntava como se sentia e as dores haviam acabado de vez. Jacó Simão ouvia e queria era matar seu interlocutor. Bufou uma, duas, três vezes e partiu para cima para tentar esmurrar o franzino e estranho animal. Para ele, Jacó Simão, tratava-se de um animal. Com um golpe certeiro de cajado, o ser derrubou o homem transmutado e num leve tom de voz murmurou para que se acalmasse, as explicações viriam no momento adequado e o uso da força não fazia qualquer sentido, já que sua missão ali era tomar conta daquele homem perdido. E era exatamente isso o que estava acontecendo. Vagando, sem ter a menor noção de onde estava estava, Jacó Simão necessita aceitar sua atual realidade. Não era mais um habitante da Cidadela, havia se transformado em um ser estranho e ainda por cima emitia sons estranhos - que compreendia com raiva. Ao menos, enquanto estatelado no chão com a ponta do cajado sobre as costas, ele refletiu e concluiu o óbvio. Pela primeira vez em muito tempo, estava adequado a um padrão e não estava sozinho. A fúria deu, por breve espaço de tempo, lugar a um sentimento de conforto. Suspirou, sentiu o peito arder e pediu, gentilmente como uma criança quando quer um brinquedo, que pudesse se pôr de pé mais uma vez. Foi atendimento de imediato por Gers.

Thursday, September 10, 2009

Capítulo 45

Sequer em seu pior pesadelo Jacó Simão havia visto figura tão medonha e de aspecto nefasto. As garras com dedos longilíneos eram repletas de rugas e assepcias. O fedor remetia a de um porco recém abatido, tal o odor de aparente necrose. E a fragilidade daquelas falanges escancarava que podia lhe quebrar o membro com um sopro. Quando, enfim, fitou o rosto do ser, Jacó Simão tremeu e por pouco não fez as necessidades em um espasmo de tensão. O pavor, todavia, travou completamente suas reações e, como se por hipnose, ficou embasbacado com o semblante da criatura. Lentamente, ela despejou sobre a cabeça do homem um líquido viscoso e ácido, tal qual pura âmonia. A nojenta mistura deu forças a Jacó Simão, que entendeu de imediato como sobrevivera àqueles dias sem comida. Eufórico, pôs-se de pé e pareceu um gigante diante do outrora monstrengo. Com um safanão, tirou o estranho de seu caminho - sentia a boca queimada pela sede - e jogou as fuças com todas as suas forças num charco pouco à frente. Saciado, limpou as vistas enquanto a água somente um pouco enlameada parava de chacoalhar. E o susto foi imediato: transformara-se num ser igual ao que lhe livrara as cordas e lhe dera a mistura suspeita. Agoniado, saiu saltando e urrando, mas em outra língua, sons que nunca seriam compreendidos na Cidadela, talvez causassem até mesmo horror, o mesmo horror que ele mesmo temia. Quis morrer, quis matar aquele que era seu semelhante agora. Mas por dentro, ele ainda permanecia Jacó Simão, portanto, resignou-se.

Wednesday, September 09, 2009

Capítulo 44

Tudo não passou de uma pesadelo, pois abriu os olhos na manhã seguinte e deu de frente com um ser franzino, travestido com uma espécie de fantasia feita à base de folhagens e penas. Seria hilariante e alvo de deboche na Cidadela. Mas ali, era notavelmente aterrorizante, com o rosto indefinido, postura indecifrável. Mesmo com o corpanzil frágil, tratava-se sim de um perigo, ao menos era que o se passava pela mente de Jacó Simão àquela altura. Cerrou os lábios e tentava - de alguma forma - analisar melhor aquela coisa estranha prostrada à sua frente. Ao mesmo tempo, como se por respeito, não erguia os olhos e não emitia qualquer sinal sonoro. Esperou. O ser, então, tomou a iniciativa e estendeu a garra, na qual pendia uma lâmina presa a um cabo de madeira escura. Com duas estocadas certeiras, cortou as amarras do apavorado homem, que mesmo livre - pela primeira vez em dias - não esboçou qualquer reação. Apavorado, aguardou pelo próximo passo do talvez inimigo. Ele deu um passo adiante, abaixou-se um pouco e buscou contato visual com Jacó Simão. Após segundos, que pareceram mais horas, Jacó ergueu um pouco queixo, somente o suficiente. E o que viu lhe cortou a alma como um raio desfaz uma árvore num piscar de olhos.

Capítulo 43

Não resistiu ao cansaço e adormeceu, refestelado ao tronco da árvore. Ao menos não estava em pé, mas sofrera durante tempo infindável, sentado sobre raízes volumosas. Estranhamente, sequer formigas por ali passeavam e o silêncio era dominante. Dormindo profundamente, Jacó Simão não conheceu seus sequestradores - se é que poderiam ser chamados de forma tão pejorativa - neste primeiro encontro. Estiveram lá durante a madrugada e retiraram o pano da boca do debilitado homem. Quando acordou, ele se deparou com cenário semelhante ao que se encontrara antes de adormecer. Entretanto, eram locais distintos, estava certo disto. Ou ao menos achava que sim e haviam removido seu corpo quase moribundo dali. Estavam jogando com ele, pensou em voz alta, e se assustou com o som gutural que emitiu. Sentiu estar mais forte e mais uma vez testou a resistência das cordas. Passou o dia todo se debatendo, urrando e maldizendo a todos - gritava a plenos pulmões e o fazia à toa. Passou desta forma por quase uma semana e não sabia como não morrera de fome e sede ainda. Por um breve momento, trocou os berros e se convenceu de que agora já era um fantasma e vivia em um mundo imaginário, espiritual. E o medo lhe rompeu as entranhas com tal suposição.