Thursday, February 10, 2011

IMPULSO

I - Explicação

S. voltou a face para sua direita visando o pequeno feixe de luz que por ali escapava. Aguçada pela curiosidade, ela pensou se valeria a pena romper a ordem que lhe fora imposta mais cedo; ordem responsável por quase levá-la à loucura plena. S. sempre fora extremamente suscetível a desbravar e vivenciar situações diferenciadas. Portanto, o momento era de fato apetitoso, com leve requinte de crueldade, como chegou a pensar a própria S., ainda que bastante incapacitada por conta dos coquetéis medicamentosos.

Mal sabia, a pobre S., na origem desta história, que se tratava de uma armadilha ardilosa e cheia de poréns. É necessário, entretanto, organizar os fatos, obedecendo sistematicamente a ordem cronológica em que eles ocorreram. Para todos os efeitos, S. foi vítima de sua própria soberba, se assim podemos caracterizar a ânsia por sobrepujar limites pré-estabelecidos. Além de narrar os acontecimentos, corretamente ordenados, deixo evidente que, desde o início, busquei o mínimo de envolvimento neste caso, creio.

II - Rotina

Antes de ir para o trabalho, S. tomava um longo e demorado banho, motivo pelo qual precisava ter de acordar com o Sol ainda esboçando dar as boas caras no Horizonte. E, claro, perdia algum tempo para alimentar Fritz, o pequeno bichano de raça indefinida, e uma companhia inseparável, ao seu modo ranzinza de ser.

Para não se atrasar com frequência, S. evitava se alongar no consumo do desjejum. Ela basicamente devorava com languicidade uma maça e engolia uma xícara de café preto, sem açúcar, excelente remédio para a ressaca. Todo este preparativo representava o prazo exato disponível para alcançar o ponto de ônibus com relativa folga e ainda recuperar parte do fôlego. Não cultivava em demasia a vaidade, ou seja, sem desperdiço de fronte ao guarda-roupa.

Tudo pronto, S. partia para o emprego, onde já batia cartão havia seis anos. Semblante feliz, ela sequer se queixava de desempenhar o mesmo cargo, o de secretária executiva, há tanto. Com poucas perspectivas de subir na estafante vida corporativa, S. concentrava seus grandes momentos em fantasias que despejava no computador do escritório nos momentos ociosos. E também ao deixar o local, para se arriscar no burburinho noturno da Cidade.

III- Descartável

A gandaia nem sempre fazia as vezes de melhor amiga de S. , mas ajudava a amortizar o tédio e a falta de emoções daquela mulher, por assim dizer, em vias de se tornar mais uma balzaquiana inveterada. Esta vida à toa não a incomodava, tratava-se somente de uma breve fuga para aplacar seus desejos íntimos primitivos; fossem eles realizados com homens, ou mulheres, ou afins. Após inúmeras frustrações, o importante era saborear o prazer fugaz. Danos - permanentes ou não - faziam parte daquele jogo sórdido.

Obviamente, tal comportamento estava longe de ser condizente com os seus afazeres burocráticos e cotidianos, isso sem contar os adjetivos pouco lisonjeiros que ganhava com vida tão desregrada. Por ser independente, S. sofria o típico preconceito velado, talvez o da pior espécie, já que poucas chances de defesa concede às suas vítimas. E de tanto se expor, aquela voluptuosa mulher lacrava qualquer possibilidade de estabelecer uma relação afetiva longeva.

IV - PUNIÇÃO

Desta maneira, S. acabou tendo o que merecia, ao menos na visão daquele ogro travestido de homem. Ele a encontrou completamente embriagada, na saída de uma boate chinfrim, e cujo interior - de peculiar odor acre - abrigava perigos reais para uma criatura ingênua e de porte esquálido.

Vi quando S. saía abalroada pelo sujeito em direção ao beco fétido que compunha o cenário pavoroso daquele lugar. Postei-me atrás de uma caçamba de lixo, já aguardando pelo pior, e minha excitação era tamanha que precisei morder com força minha mão para não me entregar. Enquanto arrefecia minha sanha me deleitando com os gritos e gemidos abafados de S., o homem a possuía com fúria e uma intensidade brutal.

O animal terminou o serviço deixando-a nua e desacordada, repleta de ferimentos causados por uma garrafa quebrada. Ainda furtivamente, aguardei pelo resgate, a quem fiz questão de chamar, incólume atrás de meu esconderijo. E me certifiquei de que S. seria tratada adequadamente, plantando em sua bolsa um cartão de convênio médico antes de o socorro desembarcar na boca do lixo.


V - Epílogo

Claro, com tantas ressalvas, parece que me ponho no papel de carrasco e detrator de S., o que é um terrível mal-entendido. Só continuo me refugiando em palavras, como desculpas solenes, para não ter o mesmo fim de minha ex-amante. A inveja mata, reza o ditado. Prefiro ser uma testemunha acovardada, salva por detrás de uma carta, a ter extirpado o mínimo de dignidade que ainda desfilo por aí, no admirável mundo real.

Sim, oras, porque - no final das contas - sou contra qualquer tipo de hipocrisia e não compactuo com atos de selvageria. Sim, ela foi conduzida à minha clínica e diagnostica como uma borderline, ou seja, uma infeliz com uma grave complicação psiquiátrica, acometida por oscilações perturbadoras de humor.
E minha ordem havia sido clara. 'Jamais ambicione o meu feixe de luz.'

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