Monday, February 14, 2011

Ladeira 13

Ontem, ao subir a Ladeira 13, descobri que tinha medo do escuro. Não descobri. Na verdade sempre soubera disso, mas só nesta ocasião aceitei, mastiguei, engoli e digeri tal informação. De algum modo, os degraus irregulares daquele corredor fétido e úmido me deixavam incomodada. Vertigem, talvez. O pior de tudo era abrir caminho entre a vasta folhagem que se debruçava sobre a mureta que acompanhava a escadaria. Aquilo nunca havia sido podado. Esteja certo disso.

O modo como se enxerga o mundo é a imagem que temos de nós mesmos. Assim me sentia. Não sabia mais se o cheiro, umidade e a escuridão provinham da paisagem ou de minha boca; dos meus olhos, dos meus ouvidos, enfim; de todos os meus poros. Sabia também que estava sendo seguida. Não tinha coragem de olhar para trás. Nunca olhava. Percorria todo dia o mesmo caminho, e nunca tivera a audácia de olhar por sobre o ombro. Mas um resquício de sombra escapulia furtivo alguns degraus abaixo. Distância religiosamente respeitada!

Mas que respeito seria esse? Nunca fora habituada ao RES-PEI-TO! Nunca tivera a oportunidade de ver sua face. Talvez por ter caminhado de costas para tantas coisas durante toda a vida. Desejo agora - com toda a força de minhas vísceras - que este estranho me puxe pelo braço. É engraçado sentir vontade de ser interpelada por um estranho, ou mesmo estranha. O fato é que ultimamente não tenho tido tempo para maiores delongas ao me apresentar. Depois de tanta rotina, sinto-me atraída pelo fato de estar sendo uma possível vítima em potencial de um maníaco, ou mesmo um reles vendedor de inutilidades.

O que me diria ele? A qual mundo pertencerá? Qual a textura de sua pele, seus anseios, temores e amores? Por qual motivo pulsará seu músculo vital? Pode acontecer de o peso que carrega nas costas ser mais impiedoso do que aquele pelo qual venho sendo esmagada... Que venha! Que me mostre seu mundo e enriqueça o meu, seja como for, abstenha-se o bom senso. Enriqueça, ou que ao menos que seja de mínima utilidade. Um beijo quente basta. Um calafrio na base do pescoço. Um arranhão. E que suma depois como se nem existisse. Perfeito.

A ideia fez de minha cabeça sua residência. Parei. Minhas pernas estavam estancadas no chão, não podia mais andar ante ao novo. Toda a coragem que antes me faltara para viver eu agora não tinha para recusar a vida. Aqueles poucos segundos antes de o toque ser consumado duraram horas. Interminável momento. De uma angústia saborosa e sádica. Pensava de onde viria e como seria o contato. Se o calafrio subiria pela espinha. Ou pela barriga. Auspiciava por um arrepio de prazer. Ou de medo. Se fosse de medo, não deixaria de ser um delicioso ato de malícia de minha mente.

O som dos passos tornava-se mais decidido, tal qual minha frequência cardíaca e a contração muscular de meu baixo ventre. Já era ensurdecedor, àquela altura, o bater da madeira do calçado contra o cimento. O piso tão sujo e repleto de ervas daninha, porém, abafava a reverberação do caminhar. O matagal ao lado ajudava, um pouco, a evitar o eco. E se gritasse certamente ninguém ouviria. Assim como qualquer outro som que por ventura viesse a expelir, num ímpeto de sabe-se lá o quê, poderia ganhar terreno fora daquele ambiente lúbrico.

Um toque no ombro.

'Com licença.' E foi-se. Da mesma maneira como chegou.

Sunday, February 13, 2011

Eu, Cavalo

Aquele bordão batido, 'a vida é um jogo', surpreendeu meu subconsciente numa noite de sonhos agitados. Talvez pelo fato de ter sacrificado horas valiosas de descanso de coisa alguma para me digladiar contra o computador portátil no xadrez, foi no tabuleiro deste nobre esporte que me pautei para discorrer sobre o assunto.

Ideia simples: qual peça eu seria, caso tivesse o poder de realizar uma 'mutação', e partir para as casas brancas e pretas, sessenta e quatro ao todo, distribuídas em linhas horizontais e verticais? O objetivo, todos sabem, encurralar o rei inimigo e capturá-lo, o famoso xeque-mate.

Na linha de frente estão os peões. Na verdade, apesar de pouco valor, as oito peças que protegem os seus superiores são fundamentais, mesmo que sacrificados inadequadamente por várias razões. E no final eles fazem enorme falta. De fato, porém, não me encantaria atuar por ali, como um ser descartável. O peão é muito marginalizado.

Não vou seguir a ordem dos puristas e profissionais sobre a ordem de importância das peças, vou pela minha consciência. Temos os bispos, cuja denominação já me deixa contrariado. Eles correm na diagonal, são matreiros e oportunistas. Surgem do nada e, quando menos se espera, pronto! Você é surpreendido com suas infiltrações vis.

As torres exercem papel similar ao dos bispos, só que com seus eixos determinados pelas coordenadas verticais e horizontais. Trata-se de uma arma bastante ‘quadrada’, retranqueira e voraz. Considero-as eficientes, mas pouco criativas. Isso sem contar o fato de que uma torre de verdade só faz acontecer se cair na cabeça de alguém e, mesmo assim, ainda consertarão Pisa.

Como um bom jogo, o xadrez conta com um belo casal – sustentado pela mulher. O rei praticamente foge o tempo inteiro, com passos curtos e quase nenhum poder de decisão, é um covardão. Presa fácil para a rainha rival, esta dotada de enorme mobilidade. Perder a dama é derrota quase certa, portanto, diante de um adversário mais forte, um troca-troca sempre é bem-vindo.

Dentro deste universo, contamos com dois cavalos, de longe os personagens mais exóticos. Eles andam em 'L' e saltam sobre as demais peças sem pedir licença. Com este diferencial, os cavalos ludibriam como poucos e são irritantes quando querem, em jogadas ofensivas e defensivas. Uma tabelinha com a rainha, com alguma malícia, é xeque-mate garantido.

Ora, há melhor motivo para optar por eles?

Thursday, February 10, 2011

IMPULSO

I - Explicação

S. voltou a face para sua direita visando o pequeno feixe de luz que por ali escapava. Aguçada pela curiosidade, ela pensou se valeria a pena romper a ordem que lhe fora imposta mais cedo; ordem responsável por quase levá-la à loucura plena. S. sempre fora extremamente suscetível a desbravar e vivenciar situações diferenciadas. Portanto, o momento era de fato apetitoso, com leve requinte de crueldade, como chegou a pensar a própria S., ainda que bastante incapacitada por conta dos coquetéis medicamentosos.

Mal sabia, a pobre S., na origem desta história, que se tratava de uma armadilha ardilosa e cheia de poréns. É necessário, entretanto, organizar os fatos, obedecendo sistematicamente a ordem cronológica em que eles ocorreram. Para todos os efeitos, S. foi vítima de sua própria soberba, se assim podemos caracterizar a ânsia por sobrepujar limites pré-estabelecidos. Além de narrar os acontecimentos, corretamente ordenados, deixo evidente que, desde o início, busquei o mínimo de envolvimento neste caso, creio.

II - Rotina

Antes de ir para o trabalho, S. tomava um longo e demorado banho, motivo pelo qual precisava ter de acordar com o Sol ainda esboçando dar as boas caras no Horizonte. E, claro, perdia algum tempo para alimentar Fritz, o pequeno bichano de raça indefinida, e uma companhia inseparável, ao seu modo ranzinza de ser.

Para não se atrasar com frequência, S. evitava se alongar no consumo do desjejum. Ela basicamente devorava com languicidade uma maça e engolia uma xícara de café preto, sem açúcar, excelente remédio para a ressaca. Todo este preparativo representava o prazo exato disponível para alcançar o ponto de ônibus com relativa folga e ainda recuperar parte do fôlego. Não cultivava em demasia a vaidade, ou seja, sem desperdiço de fronte ao guarda-roupa.

Tudo pronto, S. partia para o emprego, onde já batia cartão havia seis anos. Semblante feliz, ela sequer se queixava de desempenhar o mesmo cargo, o de secretária executiva, há tanto. Com poucas perspectivas de subir na estafante vida corporativa, S. concentrava seus grandes momentos em fantasias que despejava no computador do escritório nos momentos ociosos. E também ao deixar o local, para se arriscar no burburinho noturno da Cidade.

III- Descartável

A gandaia nem sempre fazia as vezes de melhor amiga de S. , mas ajudava a amortizar o tédio e a falta de emoções daquela mulher, por assim dizer, em vias de se tornar mais uma balzaquiana inveterada. Esta vida à toa não a incomodava, tratava-se somente de uma breve fuga para aplacar seus desejos íntimos primitivos; fossem eles realizados com homens, ou mulheres, ou afins. Após inúmeras frustrações, o importante era saborear o prazer fugaz. Danos - permanentes ou não - faziam parte daquele jogo sórdido.

Obviamente, tal comportamento estava longe de ser condizente com os seus afazeres burocráticos e cotidianos, isso sem contar os adjetivos pouco lisonjeiros que ganhava com vida tão desregrada. Por ser independente, S. sofria o típico preconceito velado, talvez o da pior espécie, já que poucas chances de defesa concede às suas vítimas. E de tanto se expor, aquela voluptuosa mulher lacrava qualquer possibilidade de estabelecer uma relação afetiva longeva.

IV - PUNIÇÃO

Desta maneira, S. acabou tendo o que merecia, ao menos na visão daquele ogro travestido de homem. Ele a encontrou completamente embriagada, na saída de uma boate chinfrim, e cujo interior - de peculiar odor acre - abrigava perigos reais para uma criatura ingênua e de porte esquálido.

Vi quando S. saía abalroada pelo sujeito em direção ao beco fétido que compunha o cenário pavoroso daquele lugar. Postei-me atrás de uma caçamba de lixo, já aguardando pelo pior, e minha excitação era tamanha que precisei morder com força minha mão para não me entregar. Enquanto arrefecia minha sanha me deleitando com os gritos e gemidos abafados de S., o homem a possuía com fúria e uma intensidade brutal.

O animal terminou o serviço deixando-a nua e desacordada, repleta de ferimentos causados por uma garrafa quebrada. Ainda furtivamente, aguardei pelo resgate, a quem fiz questão de chamar, incólume atrás de meu esconderijo. E me certifiquei de que S. seria tratada adequadamente, plantando em sua bolsa um cartão de convênio médico antes de o socorro desembarcar na boca do lixo.


V - Epílogo

Claro, com tantas ressalvas, parece que me ponho no papel de carrasco e detrator de S., o que é um terrível mal-entendido. Só continuo me refugiando em palavras, como desculpas solenes, para não ter o mesmo fim de minha ex-amante. A inveja mata, reza o ditado. Prefiro ser uma testemunha acovardada, salva por detrás de uma carta, a ter extirpado o mínimo de dignidade que ainda desfilo por aí, no admirável mundo real.

Sim, oras, porque - no final das contas - sou contra qualquer tipo de hipocrisia e não compactuo com atos de selvageria. Sim, ela foi conduzida à minha clínica e diagnostica como uma borderline, ou seja, uma infeliz com uma grave complicação psiquiátrica, acometida por oscilações perturbadoras de humor.
E minha ordem havia sido clara. 'Jamais ambicione o meu feixe de luz.'