Wednesday, September 16, 2009

Capítulo 51

Gers entrou na Cidadela sob o olhar desconfiado de seus pares. Dentro da carroça, enlaçado por correntes e cadeados, Jacó Simão olhava ao redor, mas já estava muito alterado para esboçar alguma reação. Alguns jogaram frutas sobre ele, num ato hostil e pueril, para os habitantes daquele lugar, não passava de outra aberração com curto prazo de validade. Jacó, recém encarnado em um bicho estúpido, sentia-se feliz. Pegou o que pode e comeu, estava faminto. Os outros dois, plácidos, não davam a mínima, conheciam o roteiro. Eram dois sortudos, dependendo do ponto de vista, que não foram aproveitados na Arena por serem muito fracos para combate. E por isso, eram os lacaios domésticos e de caçada de Gers. Foram capturados em episódios diferentes, mas vinham de um mesmo lugar e caberá uma melhor explicação mais tarde. Enquanto rompiam pela Cidadela, Gers estufava o peito e cantarolava algo em sua língua de som estridente e pertubador, nitidamente tentando atrair o máximo da atenção do povo. Deu com o cajado no lombo do puxador de carroça e parou, numa espécie de praça, um centro, onde os mais diversos tipos berravam e vendiam de tudo. Ou trocavam. Havia um odor suspeito no ar e no céu os abutres se alinhavam, esperando o cair da noite, quando os restos eram desovados num aterro. Gers tomou o rumo de um palanque e pediu a vez. Anunciou a plenos pulmões que encontrara um verdadeiro assassino, um sanguinareo de primeira linha. E que dali a alguns dias, a data a ser marcada, o colocaria em combate. Depois disto, deu orientaçoes breves para os dois outros escravos e foi para sua choupana. Estava cansado após tantos dias fora de casa e ainda precisava, com urgência, batizar seu gladiador. E, acima de tudo, ao menos dar-lhe algum treinamento, para que não fosse trucidado logo de cara. Por mais que Jacó Simão tenha quase que literalmente caído do céu, não era algo a ser despediçado, mas sim um talento a ser lapidado. E se sentiu mportante após raciocinar como um importante homem de negócios que outrora fora.

Capítulo 50

Jacó Simão, com as feições de um pobre animal semi racional, babou uma gosta esverdeada antes de balbuciar suas últimas palavras de protesto antes de ser levado por Gers em sua carroça de quinquilharias. Eu não sou assim, não sou assim, preciso encontrar... Foi interrompido por Gers, que calou seu escravo. Após um silvo que ecoou por toda a mata, surgiram outros dois seres, não tão semelhantes quanto Gers, porém, bastante parecidos com este Jacó Simão. Os dois o recolheram e com ajuda de correntes o levaram para dentro de uma espécie de carroça com barras maciças de aço e que era puxada por uma espécie de pangaré sem rabo e de orelhas aparadas, certamente por lesões. Resignado, Jacó Simão deixou-se preder e, junto aos outros dois, subiu no transporte. Enfiou a cara feia por entre as grades, suspirou longamente e deu um urro de se fazer ouvir, quem sabe, até mesmo na longínqua Cidadela. De certo, o urro foi escutado em outro povoado, não tão longe dali. E os habitantes do povoado sabiam: estava para chegar carne nova no pedaço, mas de que tipo? O que o velho Gers teria recolhido na floresta desta vez? Há muito tempo, o carrasco, dono de um próspero negócio responsável por colocar os mais diversos seres frente a frente em combate até a morte não aparecia com alguém empolgante. Estava em baixa e corria o risco de perder seu espaço e - principalmente - a respeitabilidade. Gers, todavia, estava certo de que encontrara o animal certo para dar a volta por cima. Gers sorria - e com isso seu aspecto ganhava um semblante ainda mais detestável. Silvou outra vez e partiram.

Capítulo 49

Gers, com o tom calmo de voz grunhido, mandou Jacó Simão se calar. Ele havia invadido um lugar proibido a ele e todo o seu povo e, portanto, havia sido transformado em um habitante da civilação que ali habitava. Como estrangeiro, foi considerado priosioneiro, e ali, os priosioneiros serviam para diversas funções. O efeito da transmutação em Jacó Simão o transformou em um ser grandalhão e truculento, nem diferente do homem pacato que vivia na Cidadela e só perdera a compostura uma vez na vida, exatamente no assassinato de sua esposa Ludvigne. Era então algo em seu interior e como as transformações não eram contraladas, tomou forma de que viva em seu interior. Um indivíduo rancoroso e com ânsia de deixar tudo para trás, porém, ao mesmo tempo, muito frágil para radicalizar tão vorazmente seu estilo de vida. Deu-se que ele brutalmente matou a mulher, sem dó, quanto mais piedade. Jacó ouvia Gers e sentia-se de certo modo meio estúpido, não compreendia muito bem o que estava acontecendo. Gers, ciente de que seu novo escravo estava já em regressão intelectual, acelerou as últimas explicações. Jacó Simão, você é um brutamontes e sua vida agora depende de carregar fardos materiais. Somente os desta espécie. E você vai cumprir isto matando, decepando e dizimando quem eu quiser. Pois sou seu dono, amo e - o melhor de tudo - não paguei nada. Encontrei um moribundo no meio do nada e estou no lucro. Você, Jacó Simão, era um pobre coitado e o sofrimento só vai aumentar. Mas não tema, jovem lacaio, com suas faculdades mentais debilitadas, sua dor será interna, incapaz de externar-se em atos de fúrias, pois sua fúria será domada por mim. E por mim, Jacó Simão, você será domesticado. Como um porco selvagem.

Tuesday, September 15, 2009

Capítulo 48

Mesmo menor e mais esquelético, Gers convenceu Jacó Simão a se acalmar e precisou utilizar algum subterfúgio específico e secreto para tal, pois Jacó situava-se em situação de sentir o poderoso do momento. Gers o fez com a ajuda do cajado mais uma vez, acalmando o homem. Então pediu para ambos que se sentassem, pois muito havia ainda a ser conversado antes de prosseguirem a jornada. Calmo e muito pacato, o ser falava coisas sobre Jacó Simão ter invadido um local onde jamais poderia sonhar ter entrado e isso lhe custaria mais adiante. Ainda explicou o porquê de estar com aquela figura e a razão pela qual sentia ânsia por sangue e o desejo intríseco de destruir. Jacó Simão tentava, mas não conseguia dar muita atenção a Gers, queria experimentar suas novas habilidades. Esquecera completamente o motivo por qual estava ali e só pretendia sair correndo e aproveitar sua liberdade. Quando mencionou liberdade, foi interrompido de imediato por Gers, que já nao ostentava assim tanta paciência mais. Jacó, tal qual um jovem rebelde, pretendia de desvencilhar daquela embromação - após tantas coisas, pouco lhe importavam as razões e circunstâcias. Não era bem assim. E Gers tratou de deixar isso bem claro ao mais novo escravo de seu povo.

Capítulo 47

Jacó Simão olhou para Gers, que assim se apresentou, e analisou suas garras. Aí sim, passado o susto inicial, olhou para suas mãos, agora garras também. Passou os dedos pela pele - algo mais semelhante a couro - e sentia uma viscosidade interessante. Já não tinha nojo de si próprio e, mais do que isso, pareceu estar mais forte que nunca. Ele era mais alto não somente próximo de Gers, mas também se comparado à árvore na qual ficara amarrado nos últimos dias. Antes de fazer qualquer tipo de pergunta, andou, pisou firme sobre o chão lamacento e esboçou uma espécie de gargalhada, que saiu desafinada a ponto de afugentar pássaros e fazer com que os esquilos ali no papel de testemunhas saltassem de galho em galho para o mais longe possível. Sem perceber, Jacó Simão não murada apenas exteriormente, deixando o corpo frágil e inexpressivo para trás. Era agora um ser grotesco, medonho e bastante asqueroso. O mais importante, sentia muita força e um desejo incontrolável de arracancar a cabeça de todos os habilitantes da Cidadela com dentadas e encrustrar suas garras nas entranhas dos cadáveres, comendo, em seguida, cada órgão. Durante todo o tempo que parou para pensar nas novas possibilidades para sua vida como monstro, Gers permaneceu estático e de certa forma desinteressado, talvez não fosse novidade para ele assistir à tal reação. E, de fato, não era mesmo.

Capítulo 46

O ser grotesco começou a conversar com ele, perguntava como se sentia e as dores haviam acabado de vez. Jacó Simão ouvia e queria era matar seu interlocutor. Bufou uma, duas, três vezes e partiu para cima para tentar esmurrar o franzino e estranho animal. Para ele, Jacó Simão, tratava-se de um animal. Com um golpe certeiro de cajado, o ser derrubou o homem transmutado e num leve tom de voz murmurou para que se acalmasse, as explicações viriam no momento adequado e o uso da força não fazia qualquer sentido, já que sua missão ali era tomar conta daquele homem perdido. E era exatamente isso o que estava acontecendo. Vagando, sem ter a menor noção de onde estava estava, Jacó Simão necessita aceitar sua atual realidade. Não era mais um habitante da Cidadela, havia se transformado em um ser estranho e ainda por cima emitia sons estranhos - que compreendia com raiva. Ao menos, enquanto estatelado no chão com a ponta do cajado sobre as costas, ele refletiu e concluiu o óbvio. Pela primeira vez em muito tempo, estava adequado a um padrão e não estava sozinho. A fúria deu, por breve espaço de tempo, lugar a um sentimento de conforto. Suspirou, sentiu o peito arder e pediu, gentilmente como uma criança quando quer um brinquedo, que pudesse se pôr de pé mais uma vez. Foi atendimento de imediato por Gers.

Thursday, September 10, 2009

Capítulo 45

Sequer em seu pior pesadelo Jacó Simão havia visto figura tão medonha e de aspecto nefasto. As garras com dedos longilíneos eram repletas de rugas e assepcias. O fedor remetia a de um porco recém abatido, tal o odor de aparente necrose. E a fragilidade daquelas falanges escancarava que podia lhe quebrar o membro com um sopro. Quando, enfim, fitou o rosto do ser, Jacó Simão tremeu e por pouco não fez as necessidades em um espasmo de tensão. O pavor, todavia, travou completamente suas reações e, como se por hipnose, ficou embasbacado com o semblante da criatura. Lentamente, ela despejou sobre a cabeça do homem um líquido viscoso e ácido, tal qual pura âmonia. A nojenta mistura deu forças a Jacó Simão, que entendeu de imediato como sobrevivera àqueles dias sem comida. Eufórico, pôs-se de pé e pareceu um gigante diante do outrora monstrengo. Com um safanão, tirou o estranho de seu caminho - sentia a boca queimada pela sede - e jogou as fuças com todas as suas forças num charco pouco à frente. Saciado, limpou as vistas enquanto a água somente um pouco enlameada parava de chacoalhar. E o susto foi imediato: transformara-se num ser igual ao que lhe livrara as cordas e lhe dera a mistura suspeita. Agoniado, saiu saltando e urrando, mas em outra língua, sons que nunca seriam compreendidos na Cidadela, talvez causassem até mesmo horror, o mesmo horror que ele mesmo temia. Quis morrer, quis matar aquele que era seu semelhante agora. Mas por dentro, ele ainda permanecia Jacó Simão, portanto, resignou-se.

Wednesday, September 09, 2009

Capítulo 44

Tudo não passou de uma pesadelo, pois abriu os olhos na manhã seguinte e deu de frente com um ser franzino, travestido com uma espécie de fantasia feita à base de folhagens e penas. Seria hilariante e alvo de deboche na Cidadela. Mas ali, era notavelmente aterrorizante, com o rosto indefinido, postura indecifrável. Mesmo com o corpanzil frágil, tratava-se sim de um perigo, ao menos era que o se passava pela mente de Jacó Simão àquela altura. Cerrou os lábios e tentava - de alguma forma - analisar melhor aquela coisa estranha prostrada à sua frente. Ao mesmo tempo, como se por respeito, não erguia os olhos e não emitia qualquer sinal sonoro. Esperou. O ser, então, tomou a iniciativa e estendeu a garra, na qual pendia uma lâmina presa a um cabo de madeira escura. Com duas estocadas certeiras, cortou as amarras do apavorado homem, que mesmo livre - pela primeira vez em dias - não esboçou qualquer reação. Apavorado, aguardou pelo próximo passo do talvez inimigo. Ele deu um passo adiante, abaixou-se um pouco e buscou contato visual com Jacó Simão. Após segundos, que pareceram mais horas, Jacó ergueu um pouco queixo, somente o suficiente. E o que viu lhe cortou a alma como um raio desfaz uma árvore num piscar de olhos.

Capítulo 43

Não resistiu ao cansaço e adormeceu, refestelado ao tronco da árvore. Ao menos não estava em pé, mas sofrera durante tempo infindável, sentado sobre raízes volumosas. Estranhamente, sequer formigas por ali passeavam e o silêncio era dominante. Dormindo profundamente, Jacó Simão não conheceu seus sequestradores - se é que poderiam ser chamados de forma tão pejorativa - neste primeiro encontro. Estiveram lá durante a madrugada e retiraram o pano da boca do debilitado homem. Quando acordou, ele se deparou com cenário semelhante ao que se encontrara antes de adormecer. Entretanto, eram locais distintos, estava certo disto. Ou ao menos achava que sim e haviam removido seu corpo quase moribundo dali. Estavam jogando com ele, pensou em voz alta, e se assustou com o som gutural que emitiu. Sentiu estar mais forte e mais uma vez testou a resistência das cordas. Passou o dia todo se debatendo, urrando e maldizendo a todos - gritava a plenos pulmões e o fazia à toa. Passou desta forma por quase uma semana e não sabia como não morrera de fome e sede ainda. Por um breve momento, trocou os berros e se convenceu de que agora já era um fantasma e vivia em um mundo imaginário, espiritual. E o medo lhe rompeu as entranhas com tal suposição.

Tuesday, July 21, 2009

choque, afasia e as cobaias do doutor arantes

No início, o doutor Arantes evitava ao máximo prescrever tais receitas. Não sentia medo de perder um paciente ou mesmo sofrer um processo leve. O que lhe causava insônia era o risco de ser cassado. Perder seu registro profissional caso um incidente mais grave ocorresse. E, desta forma, como aliviaria as dores daquelas cobaias, seus pets, as pessoas de caráter duvidoso e completamente desprovidas de bom senso que o procuravam diariamente com sintomas diversos?

Não, nada disso. Doutor Arantes de forma alguma se permitiria perder seus poderes. O médico galanteador, dono de uma voz aveludada e um olhar cintilante, capaz de singrar do homem sensível ao machão de gafieira em décimos de segundos, era o sonho de consumo dos hipocondríacos. Assinaturas, rabiscos para todos os lados, e todos ficavam felizes, injetando, engolindo e, por que não, eventualmente aspirando as mais diversas substâncias. Tarja preta na veia, pra dormir, pra não esquecer, pra viver e, principalmente, flanar.

Porém, com passar do tempo, o outrora conceituado médico resolveu ir mais adiante. Seu principal objetivo não era mais tratar o indivíduo, mas sim extrair dele qualquer tipo de informação que lhe fosse de valia. Sem constrangimento, se aproveitava da ingenuidade e dependências de seus pacientes para desenvolver as teses mais estapafúrdias e, não raro, mirabolantemente eficazes.

Deu-se que num belo dia o médico conheceu a cobaia perfeita. Foi por indicação de um colega de repartição que o pacato servidor público Roberto levou sua esposa Fátima à clínica, especializada em distúrbios neurológicos, especialmente aqueles praticamente sem cura. Doutor Arantes era perito em diagnosticar casos aparentemente insolúveis. Diagnosticar, talvez, não seja exatamente a definição de sua metodologia. Experimentar, isso sim. A clínica do doutor era na verdade um laboratório, assim como sua enfermeira Neide era conivente, doce criatura voyeur.

O problema de Fátima foi imediatamente identificado por doutor Arantes, com apenas um teste clínico simples, luzinhas nos olhos e para checar o reflexo. Mesmo assim, ele manteve mistério. Ora, qual seria a graça de despachar tão curioso caso, assim logo de imediato? Pensou rapidamente e lançou, com lábios cerrados e sobrancelhas enviezadas, um alerta mais do que apavorante ao casal: "Dona Fátima, sinto muito, mas a senhora precisa ser internada o quanto antes para exames mais detalhados. Trata-se de um tumor".

Friday, July 17, 2009

última linha

Tarde de noite, os dedos não acompanhavam mais o raciocínio. Pousou os braços sobre a mesinha improvisada de madeira carcomida e suspirou profundamente, decepcionado. Sentia-se frustrado, não conseguia pôr um algumas linhas frases decentes e sensatas para encerrar aquela carta estúpida... Desculpa por isso, desculpe por aquilo também...

Sempre no último parágrafo, na última linha. Em toda sua vida, sempre o último parágrafo custava a sair e quando vinha à toa, a fórceps, era um desapontamento completo. O texto pronto, sem sal, sem açúcar, sem pimenta. E agora isso, uma reles carta, de caráter dócil, tentando amainar as rusgas recentes. E não ficava pronta, assim como todos os outros escritos. Sempre pela metade, do meio para o fim ele parava na linha final, aquela órfã de um ponto.

Amargurado, o senhor de tantos e indefinidos anos deu umas duas ou três voltas pela sala do pequeno apartamento incrustando sem piedade os dedos no couro cabeludo, arrancando os poucos fios que recobriam o topo da cabeça repleta de cicatrizes. Traços cravados em sua pele por conta de um acidente de carro. Bebera demais na noite da briga e se aventurou pela estrada.

Escapou com sorte, mas preferiria, certamente, ter passado desta para uma melhor. Sentia-se inútil, frágil e não usufruía qualquer prazer na vida, além de entupir-se de remédios para as frequentes e cruéis dores no abdômen, frutos de excessos ordinários. Há quase vinte anos lhe foi estabelecida uma série de regras, que obviamente deu um jeito de burlar.

Depois de mais algumas coçadas nos cabelos antes de voltar à cadeira mambembe e teclou em seu computador portátil obsoleto mais duas ou três linhas. Escreveria à mão, não fosse a inabilidade para tal. Uns bla, bla, blas e decidiu não continuar. Era inútil, dispensável e, principalmente, uma mera desculpa esfarrapada para se sentir melhor. Mas quem era ele para querer se sentir melhor?