Saturday, November 04, 2006

Mandrágora

Fui pego e pagarei o preço de minha ousadia. Sabia dos riscos desde o início, desde que resolvi deixar de lado algumas convenções morais que pouco me importavam e dei liberdade aos meus desígnios carnais. A volúpia, a tentação...Enfim, posso dizer claramente - e assim o direi amanhã - no tal julgamento: "não estou arrependido". E muito pelo contrário. Deixarei este "muito pelo contrário" num tom inacabado; eles que se comam por dentro de inveja. Pois sei que gostariam de ter vivido o mínimo que fosse a minha vida dos últimos meses. Culpado? Ora, mais culpado do que eu são os outros tantos que reprimem os desejos em detrimento de um suposto salvo-conduto espiritual. Convenhamos... Tudo muito no plano das idéias. Não me descreveria como um criminoso dos bons costumes. Mas sou ligeiramente tentado a praticar pequenas patifarias e indecências quando a ocasião bate à porta. Ocorreu que tive de fugir às pressas do Baixo Ribatejo - onde trabalhava numa vinícola - sob a desagradável ameaça de ter meu instrumento decepado pelo dono do negócio. Clandestinamente vim parar neste acolhedor vilarejo, de aprazível vizinhança e, principalmente, bastante isolado. Adequado ao meu intuito de deixar a poeira assentar pelos lados de lá. Obviamente tive logo que arrumar um novo ofício. E pensei numa bela tarde: "por que não vestir a batina?" Alguém mais puritano já teria abandonado esta narrativa após tão emblemática oração. Sim, pois se vesti a batina, estaria eu vestido antes disto? Não na maior parte do tempo; confesso com um riso libertino escapulindo pelo canto dos lábios. Sem falsa modéstia. Exerço uma certa fascinação de caráter inextinguível ao outro sexo. Cheguei a chorar, estou amaldiçoado, pensei. Mas todo este pequeno drama durou pouco. Sou sim é um grande felizardo, convenci-me afinal após reviver mnemonicamente alguns episódios. Tenho dúvidas se a excitação decorria da sensação de perigo do esgueirar-se por caminhos únicos ao cair da noite para corromper a esposa alheia, ou se a defloração somente física me bastava. Ah, pular muros e caminhar pela relva como um coiote ladino...Isso me apetecia tanto quanto tomar em meus braços uma bela dona de fácil incandescer. Mas, o descaramento, a falta de pudor, o bom vinho e uma bela dona comprometida - reitero, comprometida -, são vícios etéreos. O que se deu foi que caí no conto do vigário. Literalmente. Ora, ele que de obtuso nada tinha, cercou-me numa noite de lua cheia atrás da paróquia no ato propriamente dito com sua beata favorita, e que o "favorita" fique ao critério de cada um. O homem bravo é um tolo, alguém disse certa vez. Desafiou-me para um duelo no momento do flagra. Fatiei-lhe o peito com duas belas estocadas da adaga que ele mesmo jogara aos meus pés a fim de oficializar o acerto de honra. Quando olhei em volta boa parte do vilarejo acompanhava o desfecho da cena. Os homens estavam satisfeitos, pois sabiam, independentemente de quem restasse em pé, que só havia um perdedor. As mulheres, quase em sua absoluta maioria, mostravam-se aturdidas, desconsoláveis envoltas nos braços de seus ignóbeis maridos. Esta minha confissão solitária é a prova concreta de que a ironia acompanha os passos dos livres de espírito. Assim como é digna a morte destes. Fui jogado ao calabouço e amanhã serei executado. Dizem que quando um homem é enforcado...Bem...Morrerei ereto! Que assim seja!