Tuesday, July 21, 2009

choque, afasia e as cobaias do doutor arantes

No início, o doutor Arantes evitava ao máximo prescrever tais receitas. Não sentia medo de perder um paciente ou mesmo sofrer um processo leve. O que lhe causava insônia era o risco de ser cassado. Perder seu registro profissional caso um incidente mais grave ocorresse. E, desta forma, como aliviaria as dores daquelas cobaias, seus pets, as pessoas de caráter duvidoso e completamente desprovidas de bom senso que o procuravam diariamente com sintomas diversos?

Não, nada disso. Doutor Arantes de forma alguma se permitiria perder seus poderes. O médico galanteador, dono de uma voz aveludada e um olhar cintilante, capaz de singrar do homem sensível ao machão de gafieira em décimos de segundos, era o sonho de consumo dos hipocondríacos. Assinaturas, rabiscos para todos os lados, e todos ficavam felizes, injetando, engolindo e, por que não, eventualmente aspirando as mais diversas substâncias. Tarja preta na veia, pra dormir, pra não esquecer, pra viver e, principalmente, flanar.

Porém, com passar do tempo, o outrora conceituado médico resolveu ir mais adiante. Seu principal objetivo não era mais tratar o indivíduo, mas sim extrair dele qualquer tipo de informação que lhe fosse de valia. Sem constrangimento, se aproveitava da ingenuidade e dependências de seus pacientes para desenvolver as teses mais estapafúrdias e, não raro, mirabolantemente eficazes.

Deu-se que num belo dia o médico conheceu a cobaia perfeita. Foi por indicação de um colega de repartição que o pacato servidor público Roberto levou sua esposa Fátima à clínica, especializada em distúrbios neurológicos, especialmente aqueles praticamente sem cura. Doutor Arantes era perito em diagnosticar casos aparentemente insolúveis. Diagnosticar, talvez, não seja exatamente a definição de sua metodologia. Experimentar, isso sim. A clínica do doutor era na verdade um laboratório, assim como sua enfermeira Neide era conivente, doce criatura voyeur.

O problema de Fátima foi imediatamente identificado por doutor Arantes, com apenas um teste clínico simples, luzinhas nos olhos e para checar o reflexo. Mesmo assim, ele manteve mistério. Ora, qual seria a graça de despachar tão curioso caso, assim logo de imediato? Pensou rapidamente e lançou, com lábios cerrados e sobrancelhas enviezadas, um alerta mais do que apavorante ao casal: "Dona Fátima, sinto muito, mas a senhora precisa ser internada o quanto antes para exames mais detalhados. Trata-se de um tumor".

Friday, July 17, 2009

última linha

Tarde de noite, os dedos não acompanhavam mais o raciocínio. Pousou os braços sobre a mesinha improvisada de madeira carcomida e suspirou profundamente, decepcionado. Sentia-se frustrado, não conseguia pôr um algumas linhas frases decentes e sensatas para encerrar aquela carta estúpida... Desculpa por isso, desculpe por aquilo também...

Sempre no último parágrafo, na última linha. Em toda sua vida, sempre o último parágrafo custava a sair e quando vinha à toa, a fórceps, era um desapontamento completo. O texto pronto, sem sal, sem açúcar, sem pimenta. E agora isso, uma reles carta, de caráter dócil, tentando amainar as rusgas recentes. E não ficava pronta, assim como todos os outros escritos. Sempre pela metade, do meio para o fim ele parava na linha final, aquela órfã de um ponto.

Amargurado, o senhor de tantos e indefinidos anos deu umas duas ou três voltas pela sala do pequeno apartamento incrustando sem piedade os dedos no couro cabeludo, arrancando os poucos fios que recobriam o topo da cabeça repleta de cicatrizes. Traços cravados em sua pele por conta de um acidente de carro. Bebera demais na noite da briga e se aventurou pela estrada.

Escapou com sorte, mas preferiria, certamente, ter passado desta para uma melhor. Sentia-se inútil, frágil e não usufruía qualquer prazer na vida, além de entupir-se de remédios para as frequentes e cruéis dores no abdômen, frutos de excessos ordinários. Há quase vinte anos lhe foi estabelecida uma série de regras, que obviamente deu um jeito de burlar.

Depois de mais algumas coçadas nos cabelos antes de voltar à cadeira mambembe e teclou em seu computador portátil obsoleto mais duas ou três linhas. Escreveria à mão, não fosse a inabilidade para tal. Uns bla, bla, blas e decidiu não continuar. Era inútil, dispensável e, principalmente, uma mera desculpa esfarrapada para se sentir melhor. Mas quem era ele para querer se sentir melhor?